domingo, 26 de agosto de 2012

Um caso de Burro - Machado de Assis

Um caso de burro
Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para esperta-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mau entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência , não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com idéia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem moto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”
“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direito não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace.
Machado de Assis

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Crônicas trazidas por alunos:

GRUPO 1: Quem casa quer casa

Num tempo em que se casava depois de namorar e noivar, viajei com meu marido para a minha primeira casa, no mesmo dia do meu casamento. Partia na verdade para um reino onde, tendo modos à mesa e usando meia fina, seria uma mulher distinta como Dona Aline e seu marido saindo para a missa das dez. Pois sim, meu enxoval – como cruelmente observou uma amiga – cabendo numa caixa de fósforos, foi despachado com zelo pela via férrea para uma cidade longe, tão longe que não pude eu mesma escolher casa e coisas. Como você quer nossos móveis? Havia perguntado meu noivo, “nossos móveis”, palavras para mim carregadas de velada e latente carnalidade, afinal em vias de permissão. Ah, eu disse, você pode escolher, mas gosto mesmo é daqueles escuros, pretos. Pensava na maravilhosa cristaleira de Dona Ceclília, móveis de pernas torneadas e brilhantes, cama de cabeceira alta. Para a cozinha achei melhor nem sugerir, apostando na surpresa. Você pode cuidar de tudo, respondi a meu noivo atrapalhado com as providências, os poucos dias de folga na empresa, sozinho, mal-saído de uma república onde o luxo era a mesa forrada às refeições. Não via a hora de estender sobre minha linda cama negra minha linda colcha rosa. Foi abrir a porta de nossa casa com alpendre e levei o primeiro susto de muitos de minha vida de casada. A mobília – palavra que sempre detestei – era daquele amarelo bonito de peroba. Tem pouco uso, disse meu marido, comprei de um colega que se mudou daqui. Gostei da cristaleira, seus espelhos multiplicando o ‘jogo de porcelana’- que invenção! A cama era feia, egressa de um outro desenho, sem nada a ver com a sala. E a cozinha? O mesmo fogão a lenha que desde menina me encarvoara. O fagão a gás vem em duas semanas, explicou meu marido com mortificada delicadeza, adivinhando o borbotão de lágrimas. Mas o banheiro, este sim amei à primeira vista, azulejos, louça branca e um boxe com cortina amarela desenhada em peixes e algas. Recompensou-me. Faz quarenta anos desde minha apresentação a este meu primeiro banheiro com cortina, a um piso que se limpava com sapóleo, palavra que incorporei incontinenti ao meu novo status. Vinha de uma casa com panelas de ferro que só brilhavam a poder de areia. Duas semanas depois chegou o fogão que não preteava as panelas nem as unhas, tinha um forno fantástico e se chamava PATERNO. Quando me viu a pique de chorar meu marido me disse naquele dia: quando puder vou comprar móveis pretos e torneados pra você. Compreendi, com grande sorte para mim, que era melhor escutar aquela promessa ardente ao ouvido, que ter móveis bonitos e marido desatento. Do viçoso jardim arranquei quase tudo para ‘plantar do meu jeito’, tentativa de construir um lar, esperança que até hoje guardo e pela qual me empenho como se tivesse acabado de me casar.
Adélia Prado

GRUPO 2: Saber ser feliz

Dizem que dinheiro não traz felicidade. Não posso garantir nenhuma certeza sobre tal afirmativa, posto que não tenho dinheiro. Pode ser que, para algum tipo de gente, o dinheiro traga felicidade, sim. Para outras pessoas, este estado tão almejado talvez venha da conquista de um emprego sonhado, do encontro com o grande amor da sua vida, da oportunidade de viajar pelo mundo. Não podemos nos esquecer, porém, daquelas pessoas que conseguem ser felizes sem nenhuma razão particular. Carregam a felicidade como um estado permanente e não dependente de pessoas ou acontecimentos. São felizes, simplesmente. Dessas pessoas, não apenas não podemos nos esquecer, como temos que nos lembrar.

O segredo da felicidade delas? Também não tenho certeza. Não sou psicóloga, psiquiatra, escritora de livro de autoajuda. Sou como o poeta: quase não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. E o que eu desconfio seriamente nesse caso é: o segredo da felicidade mora na sabedoria. Não estou falando de cultura, nem de formação acadêmica, vejam bem. Estou falando de sabedoria que nada tem a ver com quantos livros a pessoa já leu ou quantos idiomas é capaz de dominar.

Falo sobre saber valorizar cada pequeno detalhe. O abrir dos olhos ao despertar, o café quente numa manhã fria, um filme com final espetacular, a brisa no rosto durante a caminhada. E falo sobre saber agradecer cada grande acontecimento. O nascimento de um filho. A aprovação no mestrado. O casamento. A compra da casa própria. Falo sobre saber aceitar os problemas. Saber que para o que não tem remédio, só existe a aceitação. Saber que não existe ninguém lá em cima (nem lá embaixo) conspirando contra nós. Saber que somos pequenos demais para ocupar o posto supremo de vítimas do universo. Saber que você é o único responsável pelos seus atos. Saber que o poder das palavras é real e reclamar de tudo não leva ninguém a nada. Saber rir de si mesmo. Saber chorar sem vergonha quando for necessário. Saber que a vida não é uma competição. Ninguém precisa ser melhor, ninguém precisa ter mais (o que isso irá adiantar no fim?). Saber se colocar no lugar do outro. Saber relevar. Saber perdoar. Saber respirar fundo e contar até três. Saber que tudo passa.

Só quem sabe é feliz. Só quem traz consigo o bônus da sabedoria consegue desfrutar de uma felicidade genuína ao viver um momento de grande realização. Sei que é uma ousadia, mas vou arriscar: o segredo da felicidade é a sabedoria. Agora, o segredo da sabedoria, se alguém descobrir, me conte, por favor.

Fernanda Pinho

GRUPO 3: Quando cresci...

Não me lembro da última vez que brinquei de boneca, não me lembro de quando deixei de acreditar em Papai Noel. Não me lembro quando percebi que a vida não era tão justa e que o mundo desde que é mundo não caminha para um futuro bom, não me lembro de quando cresci, mas me lembro que os abraços devem ser carinhosos, que os sorrisos devem ser sinceros, os olhares despretensiosos, que as mágoas devem ser esquecidas, que o amor acompanha a fidelidade, que a esperança não deve ser perdida e o homem por mais que cometa estupidez tem que acreditar em si próprio e em quando ele pode ser melhor.

Vanessa Morais



Peladas - Armando Nogueira

Peladas
Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.
E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: "eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe." Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha.
Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro jogo sem camisa.
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.
Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quiçá no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.
Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: "Copa Rio-Oficial", "FIFA - Especial." Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada em recepção do Itamarati.
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha.
Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.
Nova saída.
Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar.
Em cada gomo o coração de uma criança.
Armando Nogueira

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A última crônica - Fernando Sabino

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Fernando Sabino

Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.

O homem trocado - Luis Fernando Veríssimo

O HOMEM TROCADO

O homem acordada anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.

- Eu estava com medo desta operação...

- Por quê? Não havia risco nenhum.

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

- E o meu nome? Outro engano.

- Seu nome não é Lírio?

- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.

- O senhor não faz chamadas interurbanas?

- Eu não tenho telefone!

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.

- Por quê?

- Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer:

- O senhor está desenganado.

Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite.

- Se você diz que a operação foi bem...

A enfermeira parou de sorrir.

- Apendicite? - perguntou hesitante.

- É. A operação era para tirar o apêndice.

- Não era para trocar de sexo?

Luis Fernando Veríssimo

QUESTÕES TRABALHADAS:

1) Nas crônicas de humor, é comum haver uma situação inicial ou uma fala que gera outras situações de humor. Na crônica "O homem trocado", a partir de que fala do protagonista são introduzidas as várias situações engraçadas que ocorreram com ele?

2) A crônica de humor é quase sempre um texto curto, como poucas personagens. O tempo e o espaço são limitados. Na crônica em estudo:

a) Quais são as personagens principais envolvidas na história?

b) O protagonista é tratado de modo superficial, como se fosse um indivíduo como, ou é tratado de modo mais aprofundado psicologicamente? Por quê?

c) Onde a história acontece?

d) Qual é o tempo de duração da história?

3) A crônica de humor normalmente apresenta situações rápidas, em que a fala das personagens assume um papel importante para a construção da história.

a) Que tipo de discurso predomina na crônica lida: o direto ou indireto?

b) O que o emprego desse tipo de discurso confere à narrativa? Justifique sua resposta.

4) Na crônica de humor o narrador pode ser observador ou personagem. Qual é o tipo de narrador presente na crônica O homem trocado? Justifique a sua resposta.

5) A crônica de humor normalmente se encaminha para um desfecho inesperado.

a) Na crônica "O homem trocado", qual é a surpresa final?

b) Há, antes do final da história, alguma pista explícita desse desfecho?

c) Se houvesse antecipação do desfecho, o texto continuaria engraçado?

d) Essa característica da crônica de humor aproxima-se de outro gênero textual cuja finalidade é divertir. Que gênero é esse?

6) Nas crônicas, o registro de fatos dia-a-dia ou veiculados em notícias de jornal é feito de modo a levar o leitor a se divertir ou refletir criticamente sobre a vida e os comportamentos humanos. Na sua opinião, a narrativa feita de humor lida apresenta esses mesmos objetivos? Justifique sua resposta.

7) Observe a linguagem empregada na crônica lida. Que tipo de variedade linguística é adotado na crônica de humor: a variedade padrão formal ou a variedade padrão informal?